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Por um melhor ambiente - a Secundária de Sever do Vouga

segunda-feira, abril 26, 2004

A Ética ambiental entre(vista)
Manuel João Pires, membro da Sociedade de Ética Ambiental (SEA)


JRA (Jovens Repórteres para o ambiente): Que formação tem na área do ambiente?

R: A minha formação na área do ambiente é de natureza essencialmente filosófica. A licenciatura em filosofia e a investigação posterior que tenho vindo a desenvolver permitiu-me, por um lado, adquirir consciência das questões fundamentais que se colocam actualmente à humanidade no âmbito da ética ambiental e por outro, procurar, de forma sistemática e plural, respostas construtivas para os problemas ambientais nos quais se decide o futuro das gerações futuras, sejam elas humanas ou não-humanas.

JRA: O que foi que o cativou para estar a tirar um doutoramento na área do ambiente? Qual a relevância de tirar um doutoramento na área ambiental?

R: Em primeiro lugar, penso que é necessário esclarecer que o meu projecto de doutoramento situa-se no universo problematológico da filosofia, no qual as questões de ética ambiental possuem, actualmente, um carácter decisivo, em virtude da radicalidade das questões e problemas que coloca, não só aos filósofos, mas a todos nós que, em última instância, somos, acima de tudo, animais filosóficos. Foi a radicalidade das questões da ética ambiental que estiveram na origem da minha decisão de realizar uma investigação nesta área. É importante compreendermos que as questões ambientais não se referem apenas a problemas de ordem política e pragmática como, por exemplo a gestão sustentável dos recursos naturais. A reflexão filosófica na área da ética ambiental coloca necessariamente em questão os nossos quadros de referência tradicionais, em que tanto a natureza no seu conjunto como realidade holística, como os indivíduos não-humanos são pensados como entidades com valor meramente instrumental, destituídos de valor intrínseco e, portanto sem dignidade ou estatuto moral, passíveis, por esta razão, de serem manipulados sem limites de qualquer ordem, em função e em nome dos interesses humanos, independentemente da relevância efectiva desses interesses. As questões com as quais nos confronta a ética ambiental, forçam-nos a repensar a nossa relação com a natureza no seu todo e com os indivíduos não-humanos, na tentativa irrevogável de construirmos, como defendia Aldo Leopold, um dos percursores da ética ambiental, uma Ética da Terra (Land Ethic) que permita aos humanos e não-humanos, habitar em conjunto e de forma sustentável o planeta Terra, a quem James Lovelock, na sua obra que é hoje um clássico da filosofia do ambiente, atribuiu a designação simbólica da deusa grega Gaia. Não reflectir sobre estas questões significa abandonar, voluntariamente, o campo da razão, abdicando, simultaneamente, da nossa condição de animais filosóficos. Não querer abdicar de pensar é a razão pela qual estou neste momento a desenvolver um projecto de doutoramento nesta área.



JRA: Como é que acha que este doutoramento lhe pode vir a ser útil? Que pensa que vai fazer futuramente com o diploma que irá receber?

R: Se calhar devido à minha (de)formação profissional considero que o acto de reflectir sobre questões fundamentais é útil em si mesmo, ou seja, não necessita de qualquer justificação acessória. No entanto, penso que a realização deste projecto filosófico poderá ser útil, não necessariamente para mim, na medida em que procura construir possíveis respostas para algumas das questões decisivas do nosso tempo. Futuramente espero estar a fazer exactamente o que estou a fazer neste momento, reflectir e tentar fazer com que outros reflictam sobre um conjunto de questões decisivas para que possamos construir aquilo que todos, sem excepção, humanos e não-humanos, desejamos – uma vida boa.

JRA: Qual é que acha ser a ideia geral das pessoas em relação à temática do ambiente, nos nossos dias? Qual o grau de receptividade da política ambiental?

R: Considero que na generalidade as pessoas têm alguma consciência dos problemas ambientais e das repercussões que os mesmos podem vir a ter na nossa qualidade de vida. É interessante notarmos que nos resultados de um inquérito realizado pelo Observa, sobre as Representações e Práticas dos Portugueses sobre o Ambiente, o ambiente surge em quarto lugar no que respeito aos problemas do país que mais preocupam os portugueses e 58,2% dos inquiridos declara ser simpatizante dos movimentos e organizações de defesa do ambiente. No entanto, a preocupação ambiental é ainda estruturada no interior de um quadro profundamente antropocêntrico, ou seja, por exemplo, a preocupação com a gestão sustentável dos recursos naturais ou com a preservação das espécies em vias de extinção depende, não do valor intrínseco que a natureza no seu todo ou os indivíduos não-humanos possam ter, mas do interesse instrumental que possuem para a qualidade de vida dos humanos. Além disso, grande parte das pessoas vive numa espécie de «esquizofrenia moral», porque os sentimentos de preocupação ambiental não são acompanhados de práticas coerentes, sendo notória uma assimetria entre os domínios do pensar e do agir. Este facto torna-se evidente quando pensamos, por exemplo, em pessoas que declaram possuir um conhecimento razoável das várias questões ambientais, mas que continuam, ao contrário do célebre Gervásio, a não separar os lixos, ou em pessoas que manifestam grandes sentimentos de compaixão pelo sofrimento a que os animais não-humanos são sujeitos nas unidades de criação intensiva e que continuam, através dos seus hábitos alimentares, a contribuir para a perpetuação desse sofrimento. Não obstante a constatação da existência de uma clara «esquizofrenia moral» penso que as gerações futuras, daí o papel indispensável e decisivo da educação ambiental, poderão alterar verdadeiramente a nossa forma de pensar, aprofundando um conjunto de concepções e crenças que, apesar de estarem já presentes no espírito de muitas pessoas, ainda não adquiriram a força suficiente para provocar uma mudança substancial nas nossas práticas e modos de vida. Penso, portanto, que o nosso destino futuro, depende da capacidade de superarmos o nosso actual estado de «esquizofrenia moral» e assumirmos incondicionalmente a responsabilidade de estabelecermos uma coincidência, o mais perfeita possível, entre aquilo que pensamos e aquilo que fazemos.

JRA: Descreva de forma sumária como é que se poderia realizar uma boa aplicação da política dos 3R’s?

R: Para além de tudo o que foi dito no final da resposta anterior, que de certa forma é a condição necessária para o sucesso de qualquer política ambiental, a primeira condição para realizar com sucesso a aplicação da política dos 3R’s é assumirmos plenamente a nossa responsabilidade comum pelo destino da polis. É necessário que as questões ambientais não sejam delegadas apenas aos políticos profissionais e que todos nós, a quem Aristóteles definiu precisamente como animais políticos, assumamos, como cidadãos, o nosso papel activo e intransferível no seio da comunidade. Em segundo lugar, é necessário que as instituições responsáveis criem condições materiais de concretização das políticas definidas. Finalmente, num sentido totalmente pragmático, é necessário que, através da criação de incentivos, as populações sintam que é do seu interesse concreto e imediato, aderir à política dos 3R’s, uma vez que o relógio não para e não se coaduna com o tempo que as ideias costumam demorar para amadurecer no interior das consciências humanas.

JRA: Que cadeias de resistência impedem a implementação da política dos 3R’s junto do grande público?

R: Penso que o principal obstáculo é a já referida «esquizofrenia moral» que faz com que a consciência dos problemas e a noção da necessidade das práticas, seja insuficiente para alterar comportamentos que se encontram profundamente enraizados nos modos de vida da generalidade das pessoas. Todos sabemos que os sistemas resistem à mudança e tendem a perpetuar práticas que a experiência revelou serem erradas. Infelizmente o nosso conhecido egoísmo ético e psicológico, que faz com que façamos apenas aquilo que julgamos que serve os nossos interesses, impede a assumpção plena de responsabilidade pelas gerações futuras porque, em última análise, é disso que se trata na aplicação da política dos 3R’s. A generalidade das pessoas, não altera as suas práticas quotidianas actuais em função das suas consequências futuras porque, consciente ou inconscientemente, tal como um distinto académico estrangeiro afirmou certa vez numa conferência em Lisboa sobre questões ambientais, «daqui a cem anos estaremos todos mortos». No fundo é este o raciocínio falacioso de muitos de nós. Daqui a cem anos estarei, estaremos, mortos. Logo porque preocuparmo-nos com aquilo que fazemos hoje e com as consequências que isso terá num futuro do qual já não fazemos parte. Esquecem-se, no entanto, de duas coisas óbvias: primeiro de que no futuro viverão os seus filhos, e segundo, como seria actualmente a sua vida se todos os seus antepassados pensassem da mesma maneira?

JRA: Portugal tem condições para se desenvolver procurando que o desenvolvimento se faça respeitando o ambiente?

R: Gilles Lipovetsky, um importante filósofo francês, afirmou que o século XXI será ético ou não será de todo. Em relação a Portugal e ao mundo, poderíamos dizer algo de semelhante: o desenvolvimento far-se-á respeitando o ambiente ou não será desenvolvimento. Actualmente o conceito de desenvolvimento está intimamente dependente do conceito de sustentabilidade, o que significa que é impossível fomentar o desenvolvimento de um país sem ter em conta o respeito pelo ambiente. Portugal tem imperativamente que perspectivar o seu desenvolvimento no respeito pelo ambiente, mesmo porque as áreas com maiores potencialidades no nosso país, como por exemplo, o Turismo, dependem da preservação do ambiente. Se procurarmos afirmar a nossa diferença específica seremos conduzidos à implementação de um conjunto de políticas que sejam compatíveis com o respeito pelo ambiente. É obvio que em Portugal, como nos outros países, existem interesses instituídos que constituem forças de bloqueio à prossecução do desenvolvimento sustentável. Além disso, a política de ambiente no nosso país tem sido alvo de indefinições constantes, que tornam difícil traçar políticas de futuro capazes de abstraírem das pressões e dos interesses restritos ao aqui e agora, para os quais desenvolvimento e sustentabilidade não são sinónimos, uma vez que no seu dicionário desenvolvimento é sinónimo de lucro pessoal e imediato. Além disso, as decisões sobre política ambiental necessitam de uma fundamentação que não se limite à tecnocracia reinante. Se as questões centrais não são técnicas mas éticas, não podem ser os técnicos, que não percebem nada de ética a dar as respostas, sob pena de as mesmas serem inevitavelmente desadequadas ou mesmo perfeitos disparates, o que, infelizmente, sucede com frequência em Portugal. O respeito pelo ambiente estará sempre hipotecado em Portugal e no mundo, enquanto as respostas às questões fundamentais, que em última análise se revestem de uma natureza essencialmente filosófica, continuarem a ser proferidas por quem nada percebe do assunto, leia-se de filosofia, e enquanto muitos de nós e, portanto, muitos dos políticos que têm a responsabilidade de tomarem decisões nesta área, pensarem ainda como o distinto académico estrangeiro.

JRA: Que impacto têm as omissões ou erros no que se refere ao problema do ambiente?

De tudo o que já foi dito, penso que é evidente que os erros e/ou omissões relativamente ao problema do ambiente podem assumir dimensões inauditas e catastróficas, uma vez que é nesse contexto que se decide o futuro de todos nós, humanos e não-humanos. Além disso a resposta aos problemas não pode demorar muito mais tempo, se é que já não é tarde demais. Decisões como a não ratificação do protocolo de Kyoto por parte da administração Norte Americana, ou a nossa resistência em alterar práticas quotidianas simples, são exemplos paradigmáticos da ausência de capacidade de projectar o futuro nas acções do presente. Estes erros e omissões pagar-se-ão caros, talvez não com a nossa vida, mas certamente com a (qualidade de) vida das gerações futuras.


JRA: Ser ecologicamente correcto é rentável?

A resposta a esta questão depende do sentido que dermos à palavra rentável. Se ser rentável é produzir lucros imediatos tenho certas dúvidas, ainda que a denominada «indústria verde» esteja em expansão e nós como consumidores temos, certamente, uma palavra a dizer nesta matéria. No entanto, penso que a questão não é saber se ser ecologicamente correcto é rentável mas sim se é ou não moral, isto é, se temos ou não o dever de o ser. Cabe a cada um de nós – a quem havia de ser? – responder a esta questão.


CV: Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Orienta a sua investigação, essencialmente, nas áreas da ética ambiental, bioética e filosofia contemporânea. Foi colaborador do projecto «Cultura, Natureza e Ambiente» do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. Tem realizado algumas comunicações e publicado alguns trabalhos no âmbito das áreas mencionadas, tendo participado como organizador e conferencista, entre outros, nos Colóquio Ética Ambiental. Uma Ética para o Futuro e II Colóquio Nacional de Ética Ambiental. Ambiente, Educação e Valores. É actualmente professor de Filosofia no Ensino Secundário e prepara a sua dissertação de doutoramento, subordinada ao tema Para uma Ética Trágica: Eutanásia e Ética Animal. É membro da SEA (Sociedade de Ética Ambiental).


- Entrevista ao Prof. Manuel João Pires, no âmbito do projecto Jovens repórteres para o ambiente. Projecto desenvolvido pelos alunos do 10ºA, da Escola Secundária com 3º Ciclo do Ensino Básico de Sever do Vouga, Joana Bastos, Joana Nogueira, Ana Catarina Jesus, Cláudia Miranda, Margarida Pereira, Teresa Marques, Vera Marins, Carla Durão, Tiago Tavares, Filipe Romeu, Pedro Emanuel, Tiago Amaral, Gonçalo Lourenço. Professores coordenadores: Ana Carla Dias e Luís Silva.

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Obrigado por Blog intiresny
 
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